Jean-François, o Flanêur

– Sabes de quem é este carro? Pergunto com curiosidade e espanto olhando para um puzzle que no meio tinha uma peça que não lhe pertencia. Era uma peça doutro puzzle, doutra época, inserido naquele, que de alguma forma acordou em mim um contraste, uma contradição, talvez tenha tocado no contraste das minhas ideias mais resguardadas.

– Sim, é o carro do Artista.

– Ah!- disse eu, sorrindo apenas, já viajando na minha rica fantasia.

Fantasia que me levou ao Martim Moniz, onde o artista plástico Jean-François Lam tem o seu atelier. Logo na praça, encontro novamente o contraste, o contraste das culturas, das etnias, das práticas e diferenças sociais. O contraste daquele “porta” dourada cheia de história e heroísmo e as “casas” de cartão encostadas ao prédio do atelier onde sem-abrigos residem.

Esse panorama deixou-me com poucas palavras. Nem sempre consigo identificar o que sinto nessas situações, apenas silêncio.

– Conhece a história da Praça de Martim-Moniz?

– Ah, não…disse eu meio envergonhada. Sabe, vou ser sincera consigo, eu ainda não explorei muito Lisboa e estou aqui pela primeira vez, que vergonha!

– Não se preocupe, posso contar-lhe um pouco da história da Praça.

Diz-me isto um homem francês com aspeto asiático. Encontrei o contraste até na identidade do Jean-François.

“Só a mim é que me acontecem essas situações”, pensei eu a sorrir vagamente.

Subi as escadas onde a humildade do atelier do Jean-François me abriu a porta e convidou a entrar. Uau, pensei eu, mas sem saber o que penso, apenas um turbilhão de emoções.

Senti-me honrada, honrada mesmo. Essa pessoa abriu-me a porta e recebeu-me na sua intimidade sem me conhecer, sem saber bem quem sou eu. Quantas vezes abrimos a porta da nossa intimidade a qualquer pessoa?

O que ia eu perguntar? Pensei por breves momentos, mas escolhi um lugar para me sentar e sorri. Eu aprendi que por vezes basta sorrir e as coisas acontecem…

-Uau, daqui vê a praça toda! Que lindo! 

-Sim, o meu atelier tem esta vantagem das janelas sobre a praça, que me inspiram muito. Eu gosto observar de manhã as mulheres chinesas a dançar. Todos os dias pelas 08:00 elas dançam vestidas nos seus trajes, é como um ritual de início de dia. Os indianos a jogar badminton. Eu gosto muito de observar, eu observo muito… Quer um café?

-Quero sim, obrigada. Estou a ver que tem uma máquina de café a sério.

-Sim, eu vou abrir um café em setembro, por isso tenho aqui a máquina. Mas o café que vou servir-lhe não é um café que conhece.

Irei servir um café diferente todos os dias da semana. O objetivo é juntar culturas e sabores. Vai ser um café com um pouco de mim, o meu café de sonho. Um café onde amizades podem acontecer. Onde será possível juntar pessoas, um ponto de encontro. Onde também eu os poderei encontrar. Durante 45 anos observei as pessoas, agora quero transmitir-lhes algo. Sempre pensei que a Paz vem de uma mistura de culturas.

-Hum, pode ser uma ideia contraditória…

– Quando as pessoas se conhecem, deixam de desconfiar, aproximam-se.

Se tiveres um vizinho chinês, ou de outra nacionalidade, e não sabes nada da cultura dele, ficarás sempre na fantasia e às vezes fantasias que nada têm que ver com a realidade. Ficas preconceituosa. Para mim é inimaginável ter um vizinho e não o cumprimentar, não o conhecer, não saber nada da cultura dele. Talvez a internet ajude acabar com o estereótipo das culturas…

– Gostou do café? Queria ver a minha arte? Eu não tenho aqui muita coisa mas posso mostrar-lhe algo.

– Sim, com muito gosto, mas também quero saber sobre si. Quero conhecê-lo, sinto que você tem algo de especial, por isso vim aqui.

– Eu? A mim? Bem, se calhar eu não entendi bem o motivo da sua visita…O que é que você quer saber sobre mim? Eu gosto de conversas curtas.

Tenho aqui a minha colega que é artista também e vai fazer hoje uma exposição. Pascale, queres vir aqui?! Talvez queiras dizer tu melhor algo sobre mim.

– O que eu quero saber já está a acontecer, não preciso de nada oficial, eu quero sentir, eu quero conhecê-lo de verdade. Que tipo de arte o caracteriza? A sua arte é um pouco alternativa…

O Jean-François acendeu um cigarro um pouco nervoso e começou a mostrar cuidadosamente as suas grandes e pequenas obras, algumas difíceis de entender.

-Tem alguma imagem, arte sua que possa caracterizá-lo?

-Sim, se calhar este.   

Disse ele a sorrir.

E quem é essa outra personagem? 

-É o Sidi Narum, é um homem sumério. Ele é um pouco ignorante sabes mas faz coisas giras. Eu gosto dele, disse o Jean-François a sorrir.

O Sidi Narum também vive em mim, pensei eu. O Sidi Narum é o espelho da minha parte ignorante, mas que até faz coisas giras, pensei a sorrir vagamente.

-Essa imagem mexe comigo, disse eu olhando para uma imagem de mulheres em trajes asiáticos. O que é que você quis representar aqui? 

– O que vês tu?

-Eu vejo as pernas atadas, eu vejo a mancha de cada uma. Acredito, que isso deve-se à castração, a falta de liberdade. Isso mexe comigo.

-Por isso eu preciso ver pouco, vocês vejam por mim…

Essas são as mulheres japonesas, as Mongo (?). Eu vejo que cada uma tem um véu na cara, nenhuma tem rosto, nenhuma tem identidade…

– Qual é a sua identidade? Como é ser francês com aspeto asiático?

– É sempre assim, é um contraste, é uma contradição. As pessoas nunca sabem quem eu sou. Às vezes as pessoas falam comigo em chinês mas eu não sei chinês. As pessoas ficam confusas com a minha identidade. Tenho que mostrar sempre quem sou eu.

– Quem é você?

– Eu sou um flâneur. Esta é a minha filosofia de vida. Eu observo tudo, delicadeza dos pequenos momentos, observo pessoas.

A multiculturalidade ajudou-me entender mais as pessoas e a julgar menos. A minha tia  casou-se com um homem do Haiti. Naquela época isso era fora de comum. Vou contar-lhe uma história engraçada. A minha avó, francesa conservadora, saiu uma vez com a minha primeira irmã e com a minha primeira prima nas ruas de Reims uma pequena cidade. Numa mão segurava a minha irmã e na outra a minha prima haitiana. Uma francesa pura de mão dada com uma neta asiática e outra negra era um autêntico escândalo na rua!

Nos anos 60 o meu pai era o 2º asiático naquela cidade. Ele vinha duma família rica. A família dele jogava muito nos casinos de Paris, adoravam luxo, gastavam muito. Ele quis ter uma vida mais reservada, escolheu uma vida mais humilde. Ele era muito humilde, eu envergonhava-me disso, não gostava que ele fosse assim, agora sou um pouco como o meu pai.

– Como se vive da Arte?

– Hum, apenas fazendo pequenos jobs, disse ele com muita tranquilidade e sabedoria.

Já fiz de modelo nu artístico na escola de artes daqui, já dei explicações, já servi à mesa, vários jobs que me permitem fazer depois aquilo de que realmente gosto.

Isso sabe a Liberdade pensei eu, naquele momento deixei de ouvir, respirei simplicidade, respirei contato, respirei sabedoria, respirei humildade que vinha daquela pessoa que estudou na Escola mais prestigiosa de Artes de Paris, que já teve as suas exposições nas galerias Parisienses, que viajou pelo mundo e que fala a partir dum lugar que poucas pessoas conhecem.

– Eu nunca fui apologista da produção da arte, produzir para vender.

A Arte tem de ser vivida, a Arte tem de vir da tripa, da barriga, eu conheço a barriga, disse ele.

– Qual é a distância entre Arte e Loucura?

– A arte é uma pré loucura. É uma obsessão primitiva. O artista que tem uma arte fraca, tem uma loucura pouco interessante. O que gosto na arte é que se erraste, podes misturar, transformar, libertar-te a ti mesmo. A arte é o que não vemos na televisão. A arte confronta as coisas.

– Estas imagens violentas, são representações disso? Deste confronto?

– Eu gosto de mostrar pessoas em dificuldade, pessoas reais em situações reais, pessoas no clímax da vida. Pessoas violentadas, pessoas embriagadas, agredidas, confrontadas politicamente, etc. A arte é linda, mas tem de transgredir, tem de confrontar as coisas, as realidades. A arte de incluir racismo, monstruosidade, política, violação, igualdade de género, etc. A arte de ser inclusiva. Não vejo muito isso na arte contemporânea aqui em Portugal. Ainda não.

-Bom, acho que hoje vamos ficar por aqui, disse ele a olhar para o relógio. Isso tudo foi muito profundo para mim, eu sou uma pessoa tímida.

-Claro que sim, eu agradeço. Para quem gosta de conversas curtas, 3 horas passaram a voar! Rimos os dois.

Nessa noite, saí de coração cheio para o largo da praça. Eu não caminhava, eu voava. Pensei que adoro a vida, adoro viver, senti-me mais viva do que nunca. O encontro com o Jean-François foi um encontro de almas. Eu não consigo explicar o que eu senti e não foi pelo aquilo que ele disse, mas por aquilo que ele não disse.

P.S.  E mais ainda, Essa noite transformou-se numa possibilidade mágica como esta…

Lisboa, 15 de março de 2018

Tatiana Chiochiu

Café Jean-François.



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