O Sapateiro de Lisboa

Há sete anos que passo na mesma rua, é uma rua central, é Lisboa. As manhãs são todas iguais, caminho à pressa ao longo da Av. 5 de Outubro, esta é a primeira rua lisboeta que eu conheci em 2009, e que pouco mais tarde se tornou na rua mais familiar para mim. Eu não acredito em coincidências, eu acredito que tudo o que nos acontece não é por acaso.

Apesar de ser Lisboa, ao longo dos anos algumas caras tornam-se familiares, mais ainda para pessoas como eu que observam os outros, os seus caminhares, as suas formas de vestir, as suas rotinas, o mesmo café, os mesmos sorrisos… Apesar de não os conhecer mesmo, cada um deles tem e conta uma história para mim.

Sempre observei as pessoas, as palavras que dizem, as frases que repetem, os gestos que fazem, as roupas que vestem, o tom de voz, e mais ainda aquilo que eles não dizem, os seus olhares, e acredito que os olhos são janelas para a intimidade, para o mais escondido, para o mais guardado, para a dor e para um mundo que nunca mais acaba, um mundo que está silencioso, mas que tanto diz. É só espreitar.…

Algumas pessoas destacam-se, em simples gestos, gestos e olhares que poucas pessoas notam.

Eu sou uma pessoa algures dramática e se calhar adoro este meu lado.

Num dia chuvoso, envolvida no meu drama entrei no sapateiro com um par de sapatos vermelhos aveludados que eu amava, e pedi ao sapateiro que os arranjasse, já que por causa do salto não conseguia andar mais com eles.

Por breves momentos olhei para o sapateiro e pensei “Por que será que este homem giro é sapateiro?”, como se os sapateiros tivessem de ser feios.

Eu tento não ter preconceitos, algures ainda os tenho, cada vez menos, a vida ensina-me a não os ter mais.

Mandei embora o meu pensamento e segui o meu caminho. Assim que voltei para ir buscar os meus sapatos, descobrimos que não ficaram bem, o salto não estava direito na mesma, tinha mesmo um defeito de fábrica. Comecei a refilar com ele, que me tinha estragado os sapatos, que eu gostava muito deles, que eram os meus sapatos preferidos, que tinha pago uma fortuna por eles, como se uns sapatos da Seaside fossem Louboutins e bla bla de mulher louca que eu sou, às vezes. Ele, com uma calma sem tamanho, a sorrir e a olhar para mim exatamente como eu merecia ser olhada, dando-me créditos por ter perdido um parafuso. Logo fiquei com curiosidade por ele, quem é este homem?
Sempre o vejo na mesma posição, é uma posição característica que transmite descontração, malandrice e ao mesmo tempo confiança.

Quis conhecer melhor esta pessoa, e não fiquei surpreendida quando aceitou falar comigo com tanta abertura, sempre senti que ele é uma pessoa especial.

Eu descobri que essas pessoas especiais estão ao nosso lado todos os dias, são pessoas simples mas tão ricas em tudo, são lindas e profundas, são pessoas normais com histórias que nem imaginamos, são pessoas bem sucedidas, e não vestem fato e gravata.

“Eu tenho a roupa suja assim, mas é do trabalho”, diz o Nuno continuando a arranjar uma sandália. Eu sou feliz, aliás acho que estou a viver mesmo a vida, sinto-me pleno. Gosto do que faço, gosto do meu trabalho, adoro, amo a minha profissão, o princípio é este para ser feliz, amar o que se faz.

– Sempre quis saber por que você é sapateiro? Por que é que um homem tão vistoso é sapateiro? Perguntei eu a rir.

-Não escolhi a minha profissão, encontrei-a por acaso, nunca quis ser sapateiro, a profissão veio até mim e que bom que veio ter comigo num momento difícil da minha vida, posso dizer que a profissão salvou-me.

A minha vida nem sempre foi assim, há 17 anos que não toco mais em droga. Sim, eu fui toxicodependente. Entrei no mundo da droga com 19 anos.

Nessa altura fui pai. Eu fiquei sem nada e sem ninguém. Eu vivi na rua, já fui um sem abrigo.

Fui parar a uma instituição onde aprendi a ser homem, digo sem vergonha que aprendi a ser homem, aprendi a ser útil, aprendi a trabalhar, trabalho 13 horas por dia. Do nada cheguei até aqui. “Ontem fui um sem-abrigo. Hoje sou empresário!” disse o Nuno a sorrir.

O Nuno nasceu no Carregado, Alenquer. Ficou sem pai aos 9 anos. O pai morreu num acidente de caça. Foi difícil crescer sem pai. 10 Anos atrás perdeu também o irmão, outra vez a passar pela dor da perda.

No Carregado abre o seu primeiro negócio com bastante sucesso, mas queria muito ter a sua loja em Lisboa.

– “Adoro Lisboa, identifico-me com esta cidade, acho que é a cidade mais linda de todas”.

-“Quero saber mais sobre os seus clientes. Quem são eles?”

– “Aqui em Lisboa são pessoas mais reservadas, no Carregado posso dizer que fui assediado sexualmente, as mulheres não me largavam”, diz o Nuno na brincadeira, mas que de brincadeira nada tinha. Deixei de olhar as mulheres nos olhos, até olhava para elas com receio. As pessoas sentem-se sozinhas, no final estão à procura apenas de um pouco de atenção.

– Tem alguma cliente extravagante? Histórias que ache hilariantes?

– Tenho uma senhora de 60 anos que vem sempre fazer cintos enormes, com fechos em pele, com acessórios mesmo “malucos”. Já vem ter comigo há algum tempo. Tinha outra senhora brasileira que comprava sapatos de strip mas como não conseguia andar com eles, veio pedir para eu cortar os saltos e um pouco na proteção da frente, depois quando passava com aqueles sapatos por aqui achava isso engraçado. Lá caminhava ela com os seus sapatos de strip transformados.

Outra, veio com uns sapatos pretos e vermelhos, quando os vi percebi que era para serem usados com lingerie e essas coisas, e ela pediu para os arranjar de forma a não matar com eles o homem na cama, desatamos a rir os dois.

-Aqui tenho um par de sapatos que me acompanham desde sempre, encontrei-os no Ecoponto. Desde então estão sempre comigo.

– Que tipo de pessoa acha que calçava estes sapatos?

– Executivo. Era um executivo. Essa pessoa devia ser rica, para os deitar fora!

Enquanto o Nuno fala sobre essas situações os olhos dele brilham, o humor que ele tem ajuda a desanuviar o dia de qualquer pessoa. Enquanto uma cliente com cara mais séria pergunta quando as sandálias estariam prontas, o Nuno responde com seriedade que perto do Natal de certeza absoluta!

-Tem algum hobby?

– Sim, gosto de sair com os amigos e também gosto de cinema! Coleciono sapatos pequeninos, pinto quadros, tapetes de arraiolos e tapetes de lã mas o que eu mais gosto é de desenhar nus, a maioria dos quadros que tenho são corpos nus, tenho um fascínio pelo corpo humano, pelas curvas, pela sensualidade que os corpos transmitem. Adoro apreciar os pormenores, sempre desde que me lembro tive curiosidade pelos corpos nus, adoro curvas, adoro desenhar nus.

– Você é um artista!

– Eu gosto da minha profissão porque a mesma permite-me fazer tudo com as mãos, se já reparou eu pouco utilizo a máquina. Ser sapateiro também é uma arte. Quando alguém me pergunta, você faz sapatos novos? Eu digo que eu não faço sapatos novos, mas ponho os velhos como novos! Já viu, eu mexo com estas mãos na sujidade, nos sapatos que as pessoas calçaram, eu conserto e transformo o que já não tem vida.

– Que lindo, está a dar uma vida nova há algo velho ou há algo que parece que já não tem vida, isso parece-me familiar em relação à vida humana, as transformações humanas nas quais eu acredito…
-Sim, eu nos fins-de-semana faço voluntariado, eu e a minha mulher damos comida aos sem-abrigo, levantamos pessoas do chão, entregamo-los à polícia, hospital, etc., vou com eles à estação ou onde eles precisam. Num dia estava um senhor no chão, estava embriagado, tirámos os casacos porque estava frio e a chover, tapámo-lo até a ambulância chegar, sei que naquele dia se ninguém passasse por lá e fizesse o mesmo, aquele senhor não estaria vivo hoje. Outro dia um homem estava tão bêbedo, estendido na rua e com a testa aberta por causa da queda que deu, fui levantá-lo e ajudei-o, fiquei com receio que alguém o pudesse roubar, a aproveitar-se do estado em que ele estava.

– Não julga as pessoas…

-Não, eu já estive lá, eu conheço o fundo do poço. Uma pessoa bêbeda, drogada, sem abrigo, o que for, é um ser humano! Antes do bêbedo existe um ser humano!

Com dificuldade contive as minhas lágrimas e pensei para dentro, que bom existirem pessoas como tu. Que bom que ainda existem os heróis e que eles estão aqui mesmo, ao pé de nós, que não usam um fato, uma máscara milagrosa com efeitos especiais, eles podem estar disfarçados com “roupa suja do trabalho”.

Senti paz e segurança, soube que se eu me encontrasse naquela situação existe alguém que me pode levantar. Sim, a vida dá muitas voltas, não julguemos, não estigmatize-mos as pessoas pela sua profissão, pela roupa, pela forma como falam, pelos seus bens, pelos diplomas e pela posição na sociedade, isso não é nada.

Quando o dia acaba, quando a porta da nossa casa fecha para dentro, quando guardamos a chave do nosso carro, quando tiramos o “Doutor” o “Engenheiro”, “Professor”, quando fechamos as “cortinas” somos apenas Corpos Nus.

Eu só sei uma coisa, que o Nuno tem um par de sapatos a acompanhar a vida dele e que eu tenho um par de sapatos vermelhos aveludados que nunca mais calcei, mas que acompanham a minha.



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